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Martin de João Sampaio: Patrimônio Humano da nossa gente

Por: Jesus de Míudo, em Acari do meu amor
Foto: cedida por Ademar Eduardo
 Martin de João Sampaio

Seguia descendo pela rua da Matriz e de longe avistei a figura. Inconfundível em seu andar, mesmo visto daquela forma, pelas costas e não muito perto da vista; seu corpo semi-quebrado ao meio, como se o tronco um dia tivesse intencionado se dobrar para trás, debaixo dos quilos e quilos a que submeteu-se em sua profissão. As pernas tortas, pés para fora, andar de passos curtos... Eu mesmo apressei o meu caminhar na intenção de emparelhar-me com ele. Queria puxar conversa. 

Divisei, mesmo à pequena distância que ainda nos separava, o velho chapéu de couro, preto pelas ações do tempo e das muitas mercadorias que nele se equilibraram, combinando com uma camisa de botões que fui saber abertos ao peito, encardida e com o tecido nas costas já bem mais fino que na frente, aqui e acolá quase rasgada, com os fios cedendo aos poucos ao efeito dos anos; assim como o próprio dono vai resistindo às agruras da vida; solta por sobre uma bermuda de tecido grosso, cinza, limpa como a velha camisa puída. Os pés calçavam chinelos de couro. Pareciam até feitos do mesmo couro do chapéu. 
Ao seu lado não falei, ele não percebeu a minha chegada. Desci poucos metros acompanhando-o em seu caminhar. Observei o rosto magro e marcado por rugas profundas, trazidas e oriundas da erosão dos muitos dias vividos sob condições ásperas, aliada das inundações do suor e das muitas forças iconizadas por alguma careta da labuta. Tinha a barba por fazer; o bigode fino, quase uma característica sua, ainda é bem preto; como pretos são os fios do cabelo que eu via sair por debaixo do chapéu velho. 

Percebendo a minha presença, sorriu de lado e disse bem vexado “oi, primo”, seu tratamento com todos. Respondi estirando a minha destra; recebi um aperto seguro nas pontas dos meus dedos e me perguntei calado se a mão, outrora de tanta força, já não se abriria toda. Será? Depois me fiz outra pergunta: Quanto peso foi necessário esse ser humano suportar para compor seu quadro? 

Foi assim que aconteceu num dia passado. Ontem, na Praça Otávio Lamartine, revi Martin de João Sampaio como tantas vezes o vejo. Cumprimentei da mesma forma, recebi a resposta do mesmo jeito. Mas ontem pela manhã, Martin me conquistou de vez! E pela sua ingenuidade, sua humildade e até por sua beleza! Por quê não? Acima de tudo, por sua humanidade. 

Alguém ali lhe perguntou pela idade e ouvi a resposta simples: “Sou da idade de Biláu de Silvino Nunes, de Dudé de Bantão, de Patin de Elói. Sou mesmo. Olhe aqui”. E retirou da carteira o documento de identidade, entregando-me para a consagração da verdade que dissera. É de 1942. Perguntei-lhe se já era aposentado e ele respondeu-me que sim, alegre e falando de um aumento que irá receber em breve. Alguém no círculo, para chateá-lo implicou dizendo que ele nunca havia trabalhado. Aborrecido, naquele seu jeito aperreado, Martin se virou para papai e perguntou: “Miúdo, diga aí, trabalhei ou não na usina?” Papai lhe respondeu que sim, e lhe acariciou o ego dizendo-lhe que foi o homem que mais peso botou nos ombros. “Raimundo Cortês butava pra quebrar em mim. Mas eu agüentava. Num tinha um que fosse comigo. N’era não, 

primo?” Papai lhe respondeu que sim. Outra pessoa sabedora da confusão que ele faz com medidas, valores e datas, lhe questionou sobre os fardos de algodão mais pesados e levantados por ele. Antes que ele pudesse responder, outra pessoa lhe tomou a fala e disse que era coisa para setecentos e oitenta quilos por fardo e pediu-lhe a confirmação. “Daí pra lá, ôxe! E eu subia correndo a rampa mais alta com o algodão que os caba socava com os pés”. Uma outra pessoa lhe auxiliou numa pseudo ajuda dizendo que os fardos de quinze quilos ele nunca pôde levantar. E quando ele já ia responder, papai lhe roubou a vez da fala e disse que aqueles eram por pura sacanagem de Raimundo, pois nem os caminhões podiam com os mesmos. Ele então riu pela primeira vez, deixando que víssemos os poucos dentes que lhe restam, e se virou para concordar com papai: “Pois é, primo. Nem caminhão podia com aqueles”, sentenciando a sua inocência. 
Depois, para mostrar que trabalhou e é merecida a sua aposentadoria contou da noite que pastorou um avião para dois coronéis do exército. “Ganhei foi cinco notonas, lá no campo de aviação”. 

São lendárias e inúmeras as histórias de Martin, sempre a sua inocência coroando a piada que se faz delas. Vive numa briga eterna com Paraná, um seu par na profissão de cabeceiro. 
Ainda se chateia quando alguém grita por um apelido que lhe aborrece. 

Se diz candidato a vereador e vai logo dizendo os nomes daqueles que lhe apóiam, numa lista de uns quinze nomes. Todos importantes na cidade, claro! Mas confunde, também, os partidos e acredita que se tiver meia dúzia de votos se elegerá com folga. 

Outro dia me confessou pesaroso que já não tinha mais padrinhos, nem a quem tomar a bênção: “Morreu tudo, primo. Até padrinho Zeca Marques. Só ficou madrinha Líu, que me dá uma nota de vez em quando”. Procurei saber quem era a madrinha viva e descobri tratar-se da esposa de Paulo Sérgio de Artêmio. 
Assim é Martin de João Sampaio, um homem puro de coração e belo pela sua inocência. Um ser humano notável! Quem dirá que não?